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quinta-feira, 17 de maio de 2012

Movimento diz que autismo não é doença


AMARÍLIS LAGE
da Folha de S.Paulo

Problemas de comunicação. Comprometimento da sociabilidade. Alterações comportamentais. Essas são as três principais bases para identificar uma pessoa com autismo --síndrome descrita nos anos 40 que pode se manifestar de formas severas, em que a pessoa parece totalmente alheia ao que se passa ao seu redor, a níveis brandos. Mas e se essas características não constituírem um problema, e sim uma forma diferente de pensar, tão válida quanto qualquer outra?

Para os adeptos de uma nova corrente chamada neurodiversidade, a resposta a essa pergunta é clara. Assim como não há uma cor de pele "certa", afirmam, também não há uma forma "correta" de pensar. O assunto, porém, é polêmico tanto entre parentes de autistas quanto no meio médico.

Há cerca de um mês, o debate chegou oficialmente por aqui, com a criação da primeira entidade voltada à defesa da neurodiversidade no país: o Movimento Orgulho Autista Brasil.

O grupo, que já desenvolvia algumas ações desde o meio do ano passado, integra agora uma rede espalhada por diversos países, especialmente na Oceania e na América do Norte.


Eduardo Knapp/Folha Imagem


A jovem Natália Boralli, 20, que recebeu diagnóstico de autismo aos três anos

O termo foi criado nos anos 90 por Judy Singer, especialista em sociologia do autismo. Segundo ela, o conceito não se restringe aos autistas, mas a todas as pessoas que, por qualquer motivo, possuem um padrão diferente de pensamento.

Singer decidiu se dedicar ao tema após observar o surgimento de comunidades virtuais nas quais autistas trocavam experiências e questionavam a forma como eram tratados socialmente. Era a primeira vez, desde a década de 40, quando o autismo e a síndrome de Asperger (um tipo mais brando de autismo) foram descritos cientificamente, que essas pessoas --notadamente conhecidas por terem dificuldades para se relacionar-se mostravam capazes de criar uma rede social para defender seus próprios interesses.

"Quatro aspectos principais permitiram que isso acontecesse", disse Singer à Folha. O primeiro foi o surgimento de outro movimento que buscava direitos iguais: o feminismo. "O feminismo deu às mães a autoconfiança necessária para mudar a idéia de que o autismo era causado por mães que criavam mal seus filhos", diz Singer.

Outro fator foi a ascensão dos grupos de defesa de pacientes, aliada à diminuição da autoridade dos médicos --que demoravam a diagnosticar o problema. Tudo isso foi acelerado pela internet. "Ela permitiu que as pessoas trocassem informações livremente, sem a mediação feita por médicos."

Ao mesmo tempo, o crescimento de movimentos políticos formados por pessoas com diversos tipos de deficiência estimulou alguns adultos autistas a pesquisar sobre a auto-representação.

A popularização da internet, mais uma vez, teve um papel fundamental nesse processo. "Foi o que permitiu o movimento de auto-representação dos autistas, pois é a "prótese" essencial --algo que os transforma de indivíduos introvertidos e isolados em uma rede de seres sociais, o que é um pré-requisito para uma ação social efetiva, e em uma voz na arena pública", afirma Singer.

Um desses primeiros grupos foi a ANI (Autism Network International), que surgiu, em 1992, entre autistas da Austrália e dos Estados Unidos. De acordo com Jim Sinclair, coordenador da rede, a idéia surgiu porque os autistas não se sentiam totalmente confortáveis nas comunidades sobre o assunto criadas por especialistas e familiares de autistas.

Afinal, aquelas pessoas, por mais interessadas que fossem no tema, eram "neurotípicas" --termo criado por autistas para definir quem tem um desenvolvimento neurológico considerado normal.

Entre outras diferenças, diz Sinclair, as comunidades "neurotípicas" queriam proteger os autistas, enquanto os próprios autistas buscavam liberdade para correr riscos.

Ao longo dos anos, outros grupos foram criados, assim como sites disseminando a neurodiversidade --entre eles, o www.autistics.org, em que há um link para o falso e divertido Institute for the Study of the Neurologically Typical, que brinca com as características dos "neurotípicos".

Ali, o comportamento "normal" é ironicamente considerado "um distúrbio neurológico caracterizado pela preocupação com normas sociais". Além disso, satiriza o site, "pessoas 'neurotípicas' freqüentemente acham que a forma como vivenciam o mundo é a única correta, têm dificuldades para ficar sozinhos e são intolerantes com as diferenças".

Anticura

Seja em tom bem-humorado ou não, a mensagem divulgada por esses grupos costuma ser a mesma: que o autismo é uma diferença, não uma doença.

Ativistas mais radicais levam a idéia de neurodiversidade além. Defendem que remédios e terapias alteram a subjetividade única do autista e criticam o que consideram uma prescrição excessiva de drogas para controlar o comportamento.

Na contramão, surgiram organizações como a "Cure Autism Now" (cure o autismo agora), que afirma já ter destinado US$ 31 milhões a pesquisas voltadas a evitar ou reverter quadros de autismo.

De acordo com o psiquiatra Marcos Tomanik Mercadante, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), características pessoais passam a ser consideradas doenças quando levam a uma dificuldade de adaptação. "Parte do conceito [da neurodiversidade] é correta. Os autistas têm um cérebro diferente, e isso não é, necessariamente, uma patologia. Mas a maioria deles não consegue conduzir a própria vida. É um modo de ser no mundo; mas, neste mundo, um modo desfavorável."

Para a presidente da Associação Brasileira de Autismo, Marisa Silva, o risco da visão anticura é desestimular a realização de tratamentos que podem melhorar a qualidade de vida dos autistas.

"Uma criança com autismo leve que não for trabalhada terá, quando adulta, tantos problemas quanto um autista que era muito comprometido na infância. É um problema sério, não um modo de ser", diz ela, que tem um filho autista. "Jamais diria que é o jeito dele. Ele é muito comprometido. Gostaria que houvesse uma cura."

"Se minha filha fosse curada, ela não seria a Natália", diz Eliana Boralli, mãe de uma jovem autista de 20 anos e fundadora da Associação dos Amigos da Criança Autista. Ainda assim, afirma, gostaria de ter a oportunidade de dar à filha a opção de ser ou não autista.