AMARÍLIS LAGE
da Folha de S.Paulo
Problemas
de comunicação. Comprometimento da sociabilidade. Alterações
comportamentais. Essas são as três principais bases para identificar uma
pessoa com autismo --síndrome descrita nos anos 40 que pode se
manifestar de formas severas, em que a pessoa parece totalmente alheia
ao que se passa ao seu redor, a níveis brandos. Mas e se essas
características não constituírem um problema, e sim uma forma diferente
de pensar, tão válida quanto qualquer outra?
Para os adeptos de
uma nova corrente chamada neurodiversidade, a resposta a essa pergunta é
clara. Assim como não há uma cor de pele "certa", afirmam, também não
há uma forma "correta" de pensar. O assunto, porém, é polêmico tanto
entre parentes de autistas quanto no meio médico.
Há cerca de um
mês, o debate chegou oficialmente por aqui, com a criação da primeira
entidade voltada à defesa da neurodiversidade no país: o Movimento
Orgulho Autista Brasil.
O grupo, que já desenvolvia algumas ações
desde o meio do ano passado, integra agora uma rede espalhada por
diversos países, especialmente na Oceania e na América do Norte.
Eduardo Knapp/Folha Imagem
A jovem Natália Boralli, 20, que recebeu diagnóstico de autismo aos três anos
O
termo foi criado nos anos 90 por Judy Singer, especialista em
sociologia do autismo. Segundo ela, o conceito não se restringe aos
autistas, mas a todas as pessoas que, por qualquer motivo, possuem um
padrão diferente de pensamento.
Singer decidiu se dedicar ao tema
após observar o surgimento de comunidades virtuais nas quais autistas
trocavam experiências e questionavam a forma como eram tratados
socialmente. Era a primeira vez, desde a década de 40, quando o autismo e
a síndrome de Asperger (um tipo mais brando de autismo) foram descritos
cientificamente, que essas pessoas --notadamente conhecidas por terem
dificuldades para se relacionar-se mostravam capazes de criar uma rede
social para defender seus próprios interesses.
"Quatro aspectos
principais permitiram que isso acontecesse", disse Singer à Folha. O
primeiro foi o surgimento de outro movimento que buscava direitos
iguais: o feminismo. "O feminismo deu às mães a autoconfiança necessária
para mudar a idéia de que o autismo era causado por mães que criavam
mal seus filhos", diz Singer.
Outro fator foi a ascensão dos
grupos de defesa de pacientes, aliada à diminuição da autoridade dos
médicos --que demoravam a diagnosticar o problema. Tudo isso foi
acelerado pela internet. "Ela permitiu que as pessoas trocassem
informações livremente, sem a mediação feita por médicos."
Ao
mesmo tempo, o crescimento de movimentos políticos formados por pessoas
com diversos tipos de deficiência estimulou alguns adultos autistas a
pesquisar sobre a auto-representação.
A popularização da
internet, mais uma vez, teve um papel fundamental nesse processo. "Foi o
que permitiu o movimento de auto-representação dos autistas, pois é a
"prótese" essencial --algo que os transforma de indivíduos introvertidos
e isolados em uma rede de seres sociais, o que é um pré-requisito para
uma ação social efetiva, e em uma voz na arena pública", afirma Singer.
Um
desses primeiros grupos foi a ANI (Autism Network International), que
surgiu, em 1992, entre autistas da Austrália e dos Estados Unidos. De
acordo com Jim Sinclair, coordenador da rede, a idéia surgiu porque os
autistas não se sentiam totalmente confortáveis nas comunidades sobre o
assunto criadas por especialistas e familiares de autistas.
Afinal,
aquelas pessoas, por mais interessadas que fossem no tema, eram
"neurotípicas" --termo criado por autistas para definir quem tem um
desenvolvimento neurológico considerado normal.
Entre outras
diferenças, diz Sinclair, as comunidades "neurotípicas" queriam proteger
os autistas, enquanto os próprios autistas buscavam liberdade para
correr riscos.
Ao longo dos anos, outros grupos foram criados, assim como sites disseminando a neurodiversidade --entre eles, o
www.autistics.org,
em que há um link para o falso e divertido Institute for the Study of
the Neurologically Typical, que brinca com as características dos
"neurotípicos".
Ali, o comportamento "normal" é ironicamente
considerado "um distúrbio neurológico caracterizado pela preocupação com
normas sociais". Além disso, satiriza o site, "pessoas 'neurotípicas'
freqüentemente acham que a forma como vivenciam o mundo é a única
correta, têm dificuldades para ficar sozinhos e são intolerantes com as
diferenças".
Anticura
Seja em tom bem-humorado ou não, a
mensagem divulgada por esses grupos costuma ser a mesma: que o autismo é
uma diferença, não uma doença.
Ativistas mais radicais levam a
idéia de neurodiversidade além. Defendem que remédios e terapias alteram
a subjetividade única do autista e criticam o que consideram uma
prescrição excessiva de drogas para controlar o comportamento.
Na
contramão, surgiram organizações como a "Cure Autism Now" (cure o
autismo agora), que afirma já ter destinado US$ 31 milhões a pesquisas
voltadas a evitar ou reverter quadros de autismo.
De acordo com o
psiquiatra Marcos Tomanik Mercadante, professor da Universidade
Presbiteriana Mackenzie e da Unifesp (Universidade Federal de São
Paulo), características pessoais passam a ser consideradas doenças
quando levam a uma dificuldade de adaptação. "Parte do conceito [da
neurodiversidade] é correta. Os autistas têm um cérebro diferente, e
isso não é, necessariamente, uma patologia. Mas a maioria deles não
consegue conduzir a própria vida. É um modo de ser no mundo; mas, neste
mundo, um modo desfavorável."
Para a presidente da Associação
Brasileira de Autismo, Marisa Silva, o risco da visão anticura é
desestimular a realização de tratamentos que podem melhorar a qualidade
de vida dos autistas.
"Uma criança com autismo leve que não for
trabalhada terá, quando adulta, tantos problemas quanto um autista que
era muito comprometido na infância. É um problema sério, não um modo de
ser", diz ela, que tem um filho autista. "Jamais diria que é o jeito
dele. Ele é muito comprometido. Gostaria que houvesse uma cura."
"Se
minha filha fosse curada, ela não seria a Natália", diz Eliana Boralli,
mãe de uma jovem autista de 20 anos e fundadora da Associação dos
Amigos da Criança Autista. Ainda assim, afirma, gostaria de ter a
oportunidade de dar à filha a opção de ser ou não autista.